Gays e bissexuais que "nasceram" na igreja hoje lutam contra o preconceito

Ele sempre soube, desde criança, que era “diferente”, mas não sabia explicar o que havia de “errado”, até que cresceu e “descobriu” que era gay. Este seria, talvez, o início de mais uma história sobre a vida de um homossexual. E é. A diferença é que o personagem que abre essa matéria, a exemplo de muitos e de outros três que terão seus depoimentos veiculados neste canal, “nasceu” na igreja e escolheu viver uma vida cristã, apesar de, na maioria das situações, não encontrar respaldo dentro do templo, nem nas palavras de seus membros e dirigentes.

Nesta terça-feira (29), o Lado B fala de um assunto delicado, mas que precisa ser abordado: a vida de gays e bissexuais católicos e evangélicos. Os entrevistados que compõe essa matéria aceitaram compartilhar suas experiências e opiniões, porém, sob a condição de não serem identificados. Para preservá-los, a reportagem não citará o nome das igrejas frequentadas por eles.

Hoje, com 26 anos, o menino que se sentia “diferente” desde os 6, fala com segurança e tranquilidade sobre os desafios e as batalhas internas que enfrentou. A lembrança, que ele queria esquecer, faz rolar lágrimas, mas a insegurança, felizmente, ficou para trás.

“Nascido e criado” em família de evangélicos, ele aprendeu que deveria viver sobre os preceitos da bíblia. Cresceu com “temor e tremor”, buscando por em prática os ensinamentos que lhe eram repassados, mas a idade chegou, os hormônios “floresceram” e ele se viu sem saída: não tinha atração por garotas. Pelas interpretações que ouvia do “livro sagrado”, o desejo ou “ato consumado” configurava pecado. Começava aí a tormenta.

Por várias vezes, temendo “arder no fogo do inferno”, ele tentou “mudar”, mas a mudança esperada nunca vinha. Não veio. Para não levantar suspeita e não “abalar a fé” da família e “escandalizar a igreja”, vez ou outra aparecia com uma menina, enquanto, às escondidas, ficava com meninos.

Com mulheres, o envolvimento ficou apenas nos beijos e carinhos trocados. Foi com um rapaz que teve a primeira experiência sexual. “Foi bem diferente do que tinha tido. Senti todos os meus sentidos aguçados, um misto de prazer, medo, receio e temor a Deus. Foi desagradável e pesado para minha consciência cristã”, contou.

 

Em algumas doutrinas, homossexuais não se encaixam nos preceitos bíblicos. (Foto: Reprodução/Internet)Em algumas doutrinas, homossexuais não se encaixam nos “preceitos bíblicos”. (Foto: Reprodução/Internet)

O “disfarce” seguiu até os 20 anos. “Fica esporadicamente com garotas, mesmo sabendo que não tinha condições de ter uma vida de hétero. Larguei de vez esse compromisso de ter que me enquadrar no perfil cristão perfeito, até mesmo porque a maioria dos meus ficantes [homens] eram da igreja”, conta.

Apesar da decisão, a cabeça “borbulhava” e angústia só aumentava. À essa época as duas irmãs já sabiam de sua condição, mas o acolheram e não deixaram que a “notícia” chegassem aos pais.

Sem encontrar lugar como homossexual dentro da igreja que aprendeu a amar e a seguir, ele não viu saída senão “criar uma tese” para se manter firme e não se deixar abalar ou fingir que o afastamento não faria diferença.

“Faz. Aprendi a amar a Deus, a louvá-lo e a buscá-lo. Não queria deixar de fazer isso. Foi então que eu comecei a questionar o porquê daquilo estar acontecendo na minha vida. De tudo o que tinha aprendido algo falava mais alto em meus pensamentos: que o Deus que você ama é misericordioso e piedoso. Nas pregações a gente ouve falar que ele não dá uma cruz mais pesada do que possamos carregar. Creio que essa é minha cruz. Vou levá-la até o fim”, conclui.

O rapaz não pretende se assumir publicamente, nem para os pais, mas também não busca a “cura da homossexualidade” porque não se vê como doente. Hoje, mais maduro, interpreta a bíblia de outra maneira e consegue ler e enxergar a benevolência divina – ignorada na maioria das exortações – a cada passagem. Costuma dizer que destruiu a igreja para construir um templo no coração.

É o que fez um outro rapaz, gay, também evangélico, que frequenta, desde a infância, uma das denominações mais antigas do Brasil. O jovem de 23 anos, que nunca se relacionou com mulheres, nem para disfarçar, conta que continua a assistir os cultos porque tem motivos para agradecer a Deus.

“Pela vida concedida por ele e por tudo que ele tem me dado. Não vou pelas pessoas e, sim, por me sentir bem. O espírito de nossas almas precisa de Deus. O ser humano precisa de uma religião”, defende.

Mas a vida de homossexuais cristãos não é fácil, afirma. “Você vive escondido. O maior desafio é ter sua vida, tentar viver seu cotidiano e não deixar a fama de gay, como dizem, “vazar” para que não venha a ser um escândalo para a igreja e para que os próprios irmãos não venham a te apontar”.

 

Templo acolhe a todos, mas alguns fiéis vivem escondidos. (Foto: João Garrigó)Templo acolhe a todos, mas alguns fiéis vivem “escondidos”. (Foto: João Garrigó)

Se a “bomba estourar”, explica, o fiel é “excluído”, impedido de participar de qualquer atividade dentro da igreja. Mas, apesar dos julgamentos, a contradição entre discurso e prática é evidente, diz.

“Imagina se a igreja souber que, dentro do seu ministério e entre seu povo, há homossexuais?”, questionou, ao falar que conhece pastores e “outros líderes” gays, alguns, inclusive, casados com mulheres. É o reflexo da hipocrisia que reina em todos os setores da sociedade. Seria diferente nas instituições religiosas?

Assim como ele, um terceiro, de 28 anos, também enfrenta a situação. O rapaz, evangélico desde os 15, afirma, com segurança, que nunca teve a “opção” de escolher a própria sexualidade, mas, na tentativa de evitar o sofrimento de ser rejeitado pela sociedade, já buscou a “cura”.

“Orei muito, jejuei, fiz promessa. Ouvia palavras que prometiam mudança de natureza, prometiam casamento. Acreditei piamente que conseguiria, mas, infelizmente, não consegui me libertar. Hoje acredito que Deus não muda natureza, pois foi ele mesmo quem fez. Ninguém mais pode nos criar ou fazer, portanto, ninguém pode nos mudar”, argumenta, ao revelar que se “descobriu” gay aos 16, mas antes, aos 4, já sentia atraído por meninos da mesma idade.

Apesar de nunca ter tido relação sexual com mulher, ele acredita que é bissexual, mas isso não diminui o problema, nem elimina o esforço da “vida dupla” para “manter a imagem”, garante.

Colecionando uma série cargos na igreja – uma das que tem doutrina mais rígida -, o rapaz conta que “disfarça bem”, mas, mesmo assim, por raramente ser visto com namoradas, é questionado sobre a orientação sexual.

“Quando me perguntam ou dão indiretas eu reajo, negando firmemente, até convencer a pessoas de que ela está completamente equivocada e que se não casei ainda foi porque tenho gênio difícil e não achei a pessoa certa. Logo, prefiro ficar sozinho”, revela.

Apesar de não ser aceito e ter de se esconder, o jovem faz coro ao discurso da maioria dos homossexuais que seguem o cristianismo. Diz que vai à igreja porque se sente bem e tem a certeza de que não será rejeitado por Deus.

“Foi ele quem em formou e me criou assim. Isso é importante. O resto é igual ou pior que eu. Ninguém foi eleito por Deus a julgar. O único juiz é ele e é por ele que eu continuo. Se um dia ele não me quiser mais lá, ele mesmo me tirará”, justifica.

Salvo algumas ressalvas, um católico praticante, que “sempre se entendeu gay”, pensa de maneira semelhante e diz que leva as “duas coisas” naturalmente, sem problemas. “Não sei se foi pela criação ou pelo próprio entendimento que tive de religião e sobre Deus”, explicou, ao comentar que, para ele, o divino se manifesta por vários meios.

 

Católico praticante, jovem diz que os homossexuais devem respeitar as leis impostas pela igreja, mas o Estado deve oferecer apoio aos homossexuais. (Foto: Vanderlei Aparecido)Católico praticante, jovem diz que os homossexuais devem respeitar as leis impostas pela igreja, mas o Estado deve oferecer apoio aos homossexuais. (Foto: Vanderlei Aparecido)

O jovem conta que nunca precisou ou tentou esconder que era homossexual por causa da igreja, mas também não viu a necessidade de se assumir aos fieis, nem perante o clero. “No que isso muda?”, questiona?

Apesar de afirmar que a Católica, além de preconceituosa, tem discurso discordante e não está preparada e nem quer debater o assunto, o jovem relata que o “equilíbrio” está no respeito, que deve pesar nos dois lados da balança.

Não há, na opinião dele, necessidade de um apoio declarado aos homossexuais. “Se é o preceito deles a gente tem que entender. É uma instituição. Se nessa instituição acham que não cabe isso, que não apóiem. Eu não vou lá buscar a igreja, até mesmo porque ela errou por um bom tempo. Mas isso não deve ser barreira para você deixar de ir”, disse.

Para o rapaz, os gays precisam entender que nunca terão apoio de 100% da sociedade e que o mundo não vai “abraçar” a causa de uma hora para outra. “Não entendo, não concordo com essa posição, mas eu respeito. Acho que um jeito de não causar atrito”, resumiu.

A igreja, acrescentou, pode manter essa postura que, aliás, deve ser respeitada. Mas o Estado, ressaltou, não tem esse “direito”. “Deveria declarar esse apoio. Não se trata de fé ou doutrina, até mesmo pelo Estado ser laico, abstendo-se teoricamente, de influências religiosas, quaisquer que sejam”.

Quando um casal gay reivindica o casamento, exemplificou, eles não estão querendo entrar de véu e grinalda dentro da igreja. Querem ter, como cidadãos, os mesmos direitos que os heterossexuais.

 

Ele não aceitou mostrar o rosto, mas disse que, na igreja, nunca precisou se esconder. (Foto: Vanderlei Aparecido)Ele não aceitou mostrar o rosto, mas disse que, na igreja, nunca precisou se esconder. (Foto: Vanderlei Aparecido)

“Se eu posso pagar a mesma conta que você, pagar o mesmo imposto que você, ser preso pela mesma coisa perante a lei, também posso ter o mesmo direito. Quero casar com um homem”, disse.

Quanto às discussões em torno de uma possibilidade de “cura”, o jovem se mostra seguro e rebate: “Se tem cura, o que eu duvido, ótimo. Estou aqui. Quer uma cobaia?”, questionou, ironizando. Aos críticos, a mensagem deixada por ele é simples: “Você tem tanta coisa para se preocupar. Vai se preocupar com quem estou transando? Por favor”.

O evangélico de 28 anos que se considera bissexual vai além e antes de ouvir “pregações” e interpretações sobre passagens bíblicas que “condenam” o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, adianta:

“Isso tema ver com a moral e os costumes da época. Antigamente se vissem uma mulher casada andando sozinha na rua ela era mal falada, principalmente se fosse à noite. Tem vários outros exemplos de moralidade e costumes antigos, que se no século passado já eram rígidos, que dirá há 3 mil anos. Lógico que Paulo iria pregar contra isso. Não teria sentido ele defender tal coisa, até porque seria apedrejado se o fizesse. Mas o próprio Senhor Jesus jamais mencionou algo sobre os homossexuais. Sodoma e Gomorra foi destruída pela lascívia, promiscuidade, maldade e corrupção, e não por terem apenas gays”.